"FALSO CADEIRANTE" EXPÕE A IGNORÂNCIA SOBRE PARALIMPÍADAS
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A chama olímpica no Brasil completava três dias após o desembarque em Brasília. Antes mesmo de cruzar as fronteiras de Goiânia, a tocha marcou seu primeiro tropeço. Literalmente.
O atleta de basquete de cadeira de rodas João Paulo Nascimento decidiu repassar a pira olímpica com ousadia. Conduzindo a tocha em uma cadeira de rodas para simbolizar a modalidade que representa, apostou no estilo ao revezar a chama olímpica.
Jota Pê, como é conhecido pelos amigos, arriscou um "tilt", manobra praticada por poucos atletas que se equilibram em apenas uma roda inclinando a cadeira com a força do tronco.
A estratégia não deu certo. Enquanto se preparava para exibir sua habilidade acrobática sob rodas, um rapaz se assustou e segurou a cadeira. Desequilibrado, o atleta caiu no asfalto de Anápolis.
A cena foi testemunhada por poucos no interior goiano. A mãe de João Paulo filmou tudo ao lado do marido com lágrimas de felicidade. O acidente virou motivo de risada com os amigos no ônibus enquanto voltavam para casa.
O que João Paulo não podia imaginar é que um vídeo da sua queda seria assistido por milhões de pessoas no dia seguinte.
O motivo da repercussão não foi o tombo, mas a reação do atleta após a queda. Movido pelo reflexo, Jota Pê apoiou com os pés para não dar com o rosto no chão. Como um rapaz em uma cadeira de rodas conseguiu usar as pernas para não se machucar?
Os questionamentos foram compartilhados por milhares nas redes sociais. As piadas espalharam rapidamente. "Tocha olímpica opera milagres e faz cadeirante andar", ironizavam. Um coro de desaforados acusou João Paulo de fraude. Sobrou até para a presidente Dilma que foi suspeita de ter contratado um falso deficiente para comover a população.
Em menos de 24 horas, apenas um das centenas de vídeos ofendendo João Paulo já tinha mais de 150 mil compartilhamentos no Facebook.
Enquanto a bola de neve crescia, o jogador de basquete de cadeira de rodas seguiu sua rotina desconectado. Cumpriu horário no laboratório onde trabalha como assistente administrativo e assistiu às aulas de educação física. A notícia da repercussão do vídeo veio primeiro por uma amiga. A mãe de João Paulo foi tomada por desespero. Queria responder às agressões. O desaforo só foi controlado pelo próprio filho.
João Paulo é do tipo tranquilão. Evita brigas e se descreve como um cara que não tem tempo ruim. Pediu a mãe para filmar um depoimento dele explicando o que tinha acontecido no acidente durante o revezamento da tocha em Anápolis. A gravação reverteu a opinião de muitos, mas teve gente que continuou condenando o jovem.
Nem todos os atletas de basquete de cadeira de rodas são cadeirantes na vida. A informação surpreendeu milhares de revoltados virtuais. E foi justamente a falta de informação que provocou tanto burburinho por conta de um vídeo de curta duração.
Enquanto Jota Pê vivia um dia de comemoração dupla - dia das mães e a vitória do seu time na Copa Aparecida de Goiânia, o atleta conversou com o Tasômetro ao telefone e compartilhou o que ele mais sente falta nos debates nas redes: conhecimentos sobre os jogos paralímpicos.
SIM. ELE CONSEGUE FICAR DE PÉ E ANDAR.
O que poderia ser comemorado, virou motivo de ódio e protestos.
João Paulo tem uma deficiência chamada Geno Valgo. Um desalinhamento dos joelhos que foi agravado após uma cirurgia. A doença também conhecida como "joelho em x" deixa as pernas tortas apontando os joelhos para dentro.
Quando diagnosticado, o menino ativo nas quadras recebeu a recomendação médica de não praticar mais esporte. No máximo, o fortalecimento dos joelhos na academia. A notícia não desmotivou a paixão pela atividade física.
Apesar de ter nascido saudável, João Paulo cresceu em uma cadeira de rodas. Seu pai, também atleta de basquete adaptado e bicampeão na modalidade, perdeu os movimentos das pernas depois de ser atingido por uma bala perdida no Maranhão aos 20 anos. A cadeira do pai virou brinquedo de criança. Incentivado desde pequeno, o menino ensaiava manobras com as rodas.
Foi aos 20 anos que João Paulo descobriu que ele poderia seguir a carreira do pai nas quadras. Depois de pesquisas na Internet, descobriu que sua doença permitia participar de times de basquete de cadeira de rodas.
A lesão do goiano é leve se comparada com atletas paraplégicos ou com as duas pernas amputadas. Consegue realizar suas tarefas diárias com pouca dificuldade. Sua doença não permite que fique de pé por muito tempo ou realize manobras de alto impacto com os joelhos.
Praticar basquete paralímpico apesar de não ser paraplégico não é oportunismo. Faz parte das regras do jogo.
QUEM PODE ENTRAR NAS QUADRAS COM CADEIRA DE RODAS?
Homens e mulheres que possuem uma deficiência mínima nos membros inferiores e não seja possível correção com tratamento médico ou fisioterapia. Em poucas palavras, todos que não são capazes de correr, pular e se equilibrar como quem não possui nenhuma limitação físico-motora.
Cada atleta recebe sua classificação funcional. Uma escala de 1 a 4,5 que identifica as limitações de cada jogador. Quanto menor o número, mais comprometedora é a deficiência. João Paulo é classificado como 4,5, isso é, uma lesão leve.
Não há injustiça contra o time adversário. Cada time possui cinco jogadores. A soma da classificação funcional de todos os jogadores não pode ultrapassar 14. Portanto, se todos os jogadores de um time fossem como João Paulo, o resultado seria 22,5 e esse time estaria desclassificado. Dessa forma, jogadores com condições severas de equilíbrio e locomoção dividem a quadra com atletas menos comprometidos. Quando o árbitro apita, cada um demonstra suas habilidades apesar das limitações.
As medidas da quadra e a altura do garrafão são as mesmas do basquete olimpíco. Na cadeira de rodas, altura e braços longos melhoram a habilidade para arremessar e interceptar a bola. Aí sim João Paulo tira vantagem com seu 1,88m. Mesmo assim, ele reconhece que tem muitos baixinhos que jogam muito nas quadras sob rodas.
BASQUETE DE CADEIRA DE RODAS NÃO É NOVIDADE
O basquete de cadeira de rodas começou a ser praticado em 1945 nos EUA, quando soldados americanos feridos na Segunda Guerra Mundial se reuniam nas quadras do hospital para jogar. A modalidade só chegou ao Brasil treze anos depois e estreiou como um esporte olímpico em 1960, em Roma.
Aos 25 anos, João Paulo já jogou em times de basquete adaptado no Brasil, Espanha e Alemanha. Com seis anos de carreira, conquistou fama entre os fãs do esporte em Anápolis.
Considerado um dos únicos atletas da cidade com chance de classificação para os Jogos Paralímpicos de 2016, Jota Pê foi indicado como uma das 12 mil pessoas que vão conduzir a chama olímpica por mais de 300 municípios do país.
"Eu mereci ser indicado. Simplesmente por ser eu, João Paulo. Jogador de basquete de cadeira de rodas que representou e representa tão bem a cidade de Anápolis."
A seleção brasileira já fez duas convocações, mas Jota Pê não foi citado nos convites. Ele ainda aguarda confiante por uma chance de representar o país para conquistar uma medalha inédita para o Brasil no basquete paralímpico.
O rapaz deixa claro que não tem relação com nenhum partido político e não recebe auxílio financeiro público por causa da sua deficiência. "Não teve Dilma para sensibilizar o povo. Não teve buraco na rua que me fez cair. Nada disso. Foi só um acidente", comentou.
OPORTUNIDADE PARA APRENDER
João Paulo leva a polêmica como oportunidade para divulgar informações sobre as modalidades paralímpicas. Para ele, o maior obstáculo para os esportes adaptados é a falta de divulgação. A carência de conhecimento sobre as regras, critérios e alternativas de categorias para quem é deficiente acaba deixando muita gente de lado da prática e das torcidas. "Tem muitos deficientes em casa com saúde para praticar esporte. Apesar de cadeirante, os deficientes também podem pesquisar um time, praticar um esporte. Faz bem para a saúde", convidou.
Depois de atacado nas redes, Jota Pê manda um recado para quem tem o hábito de criticar sem conhecer o assunto.
"Nem todo mundo é desonesto. Nem todos são do mal. Tem gente do bem, trabalhadora, que só quer fazer o seu papel. Vamos acreditar mais nas pessoas."
Vítima do veneno que contamina os principais debates nas redes sociais, o atleta faz um apelo para que as pessoas pesquisem mais antes de acusar ou criticar alguém.
"Vamos abrir mais o olho. Pense bem antes de escrever e falar. Sei que a mídia mostra muitos corruptos. Mas nem todos nós somos assim."
Durante os jogos paralímpicos, o Rio de Janeiro será palco de 23 modalidades durante os onze dias de competição. O Brasil aguarda receber os 170 países membros do comitê paralímpico.
Coragem, determinação, inspiração e igualdade são os quatro valores dos jogos paralímpicos. Os atletas já superaram suas restrições físico-motoras. Chegou a nossa vez de vencer a barreira da ignorância. Vamos aproveitar os próximos 121 dias antes do início dos jogos paralímpicos para aprender sobre as modalidades e fortalecer a torcida pelos nossos atletas.
Ouça a entrevista completa com o João Paulo Nascimento no Soundcloud abaixo :)
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